SILVIO JOSÉ CONCEIÇÃO*
gropius@uol.com.br
Trata-se de uma abordagem informacional das redes urbanas na construção do conhecimento na/da cidade, passando pela apropriação/apreensão do espaço através de cenários virtuais-informacionais, instituídos num certo lugar, com intenções e desejos variados, decodificados e reapreendidos num lugar outro, (re)significados a partir de uma certa unidade espaço-temporal, cada vez mais diluída e tênue pelo recurso da própria velocidade, e que aqui nos parecem vindas do lugar algum, produzidas por ninguém, e sem qualquer intencionalidade presente em sua (di)fusão. Propomos alguns mergulhos neste universo da informação-matéria-imaginação, abordando a materialidade da informação-imaginação, a imaginação da matéria-informação, e também a informatiCidade da matéria-imaginação. Queremos mergulhar nas tensões desta convivência múltipla, na diversidade e complexidade da coisa-sendo (constituinte e instituinte de relações) e também na multirreferencialidade do espaço, para uma compreensão da vida na e da cidade, na construção do conhecimento, do saber e da informação na rede urbana. Este ensaio propõe uma visão em rede do objeto cidade a partir de reflexões acerca dos fluxos de informação ger(i)(a)dos no espaço urbano como possibilidade para a construção do conhecimento. Observamos os vários percursos da informação e do conhecimento na cidade sob o ponto de vista dos seus aspectos físicos e relacionais como instituidores de redes informacionais.
Embrenhei-me num deserto de areia: avançava afundando entre dunas de certa forma sempre diversas umas das outras e no entanto quase iguais. Conforme o ponto do qual fossem olhadas, as cristas das dunas pareciam relevos de corpos estendidos. Aqui parecia modelar-se um braço inclinado sobre um terno seio, com a palma estirando-se sobre uma face reclinada; além parecia surgir de um jovem pé de airosos artelhos. Parado a observar aquelas possíveis analogias, deixei transcorrer um bom minuto antes de me dar conta de que sob meus olhos não tinha um crinal de areia, mas o objeto de minha perseguição
Italo
Calvino
Cosmicômicas,
1992.
As abordagens sobre o espaço
urbano são realizadas, em grande parte, com enfoque nos fatores físicos,
arquitetônicos ou formais da cidade, ou nos fatores econômicos, sociais e
culturais individualmente, havendo quase sempre a mutilação de alguns fatores
importantes para a compreensão urbana, como por exemplo, os aspectos
relacionais entre os elementos/fragmentos urbanos. O que pretendo com este
ensaio é a construção de percursos que articulem as redes urbanas e suas
questões (Castells), os espaços de fluxos de Milton Santos e a emergência em
sistemas auto-organizados de Steven Johnson.
Pleiteamos para os estudos
urbanos, em conjunto com as teorias da complexidade, a compreensão dos
fenômenos do espaço-cidade a partir (também) das relações estabelecidas e
estabelecentes da produção do conhecimento e da informação. Entendemos (também)
a cidade como espaço de fluxos, e não apenas em sua configuração
físico-espacial, ela é produto e produtora de complexidades que se apresentam
nos indivíduos/ grupos e nas articulações/ produções das atividades humanas,
onde configuram e constróem o espaço. A cidade aqui é entendida na diversidade
de sua constituição, nos movimentos e dinâmicas dos seus elementos/ artefatos
formadores, com atenção especial para as relações criadas e estabelecidas entre
eles.
O espaço deve ser considerado como um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. O espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolução espacial não se faz de forma idêntica em todos os lugares.
Mais uma vez aqui a
noção de relatividade produzida por Einstein aparece como fundamental porque
substitui o conceito de matéria pelo conceito de campo, o que supõe a
existência de relações entre a matéria e a energia. Numa comparação talvez
grosseira, as formas seriam comparáveis à matéria e a energia à dinâmica
social. (Santos,
2002a. p.153)
Tratar a cidade num sistema
em rede é uma forma de potencializar seus espaços e aqueles gerados a partir de
suas articulações. E para isso é importante o entendimento das lógicas de
funcionamento que conectam várias atividades/ações/objetos em seus fluxos.
Redes de dados, redes de informações, redes de tráfego, redes de produção de
conhecimento, redes de comunicação. São várias, e não basta listá-las. Mais
importante é tentar conhecer seus princípios. Steven Johnson fala de sistemas
auto-organizados em comunidades de formigas, em redes de softwares, no cérebro,
e também em cidades. Neste último caso ele retoma algumas considerações de Jane
Jacobs, que em seu livro Morte e vida de
grandes cidades (1961) fala dos ‘olhos das ruas’, e da apropriação do
espaço pelos nova-iorquinos. Os estudos sobre as comunidades de formigas
‘destruíram’ o mito da supremacia da ‘formiga-rainha’. Não existe a
formiga-líder, e mesmo assim, o sistema funciona. Johnson ainda cita algumas
propostas de softwares que tentam abrigar em sua arquitetura, estruturas
auto-organizadas, ao que ele chama de softwares inteligentes, e que a partir do
uso e dos conceitos construídos pelos usuários de forma não hierárquica o
sistema vai ajustando-se a cada grupo de usuários, que por sua vez, interagem
em rede.
O mesmo acontece com o espaço
urbano, que à revelia de planos diretores de ocupação do solo, criam espaços
especializados em alguns tipos de serviço/atividade ou grupo social. São
bairros ou regiões da cidade que concentram empresas de comércio de auto-peças,
de papelarias, roupas masculinas, roupas infantis, material esportivo, e assim
por diante. Ou seja, existe uma organização que pulsa fora dos sistemas
hierárquicos, e isto é uma lição da cidade para as abordagens urbanas.
No nosso caso, o termo
abordagem pode ser entendido no sentido dado pela ciência: tratar de, versar sobre
algum tema, como também em sentido originário, que vem de borda, estar na borda de
algo, ou ainda no sentido de aproximação de uma embarcação para tomá-la de
assalto. Estamos tentando uma aproximação com as embarcações da informação e do
conhecimento para, nestes cenários e territórios, tratarmos das questões
urbanas, que muito têm dos fluxos de informação e conhecimento.
Conhecimento e informação
entendidos no sentido da apreensão do espaço e do conhecimento gerado a partir
destas dinâmicas, como também de outros modos de produção de conhecimento que
acontecem nos espaços urbanos. É importante atentarmos para o espaço urbano
também nos seus aspectos físicos, pois é nele que as práticas urbanas
acontecem, reconstruindo os sentidos de espaço, como também as lógicas das
próprias práticas. São necessárias algumas aberturas nos conceitos de
espaço-urbano para que este seja entendido nos aspectos físicos, nas práticas e
produções cotidianas, e também nas dinâmicas das práticas nos espaços e dos
espaços de práticas.
Os caminhos da informação e
do conhecimento, como também os caminhos na cidade podem parecer aleatórios,
produzidos por ninguém, ou definidos segundo o acaso, ou o seu inverso –
imposto pelos detentores/operadores do poder da informação e do conhecimento.
Mas creio que eles são em grande parte, fruto dos desejos e aspirações de
grupos-indivíduos, mesmo que originalmente não tenham sido os ‘pais’ dos ‘modos
urbanos’, eles modificam e constróem o sistema à medida em que se apropriam dos
espaços, lugares e lógicas. É preciso invocar e compreender os sistemas auto
organizados estudados por Prigogine, tomá-los de assalto (e por que não?) para
que então possamos estabelecer conexões entre os sistemas de fluxos de
informação, conhecimento e pessoas na rede urbana.
Evocamos a informação, o conhecimento e a cidade com o intuito de articular o espaço urbano em suas várias dimensões e referências. Os espaços de fluxos, a circulação da informação, a construção do conhecimento e a capacidade de múltiplas dinâmicas do espaço urbano e da cidade são possibilidades de ligação entre estes campos para a compreensão do que podemos entender como matéria, imaginação e informação. A velocidade da comunicação, a grande capacidade de disseminação da informação pelos meios eletrônicos e de alta tecnologia podem levar aos ‘usuários’, a sensação de não-identidade das fontes da informação. Enquanto em outros meios, poderíamos identificar os autores e produtores da informação, o que observamos hoje é a difusão de páginas na rede mundial que propagam informações aparentemente despersonalizadas. Não que haja algum problema com a disseminação impessoal, apenas não creio que seja verídica esta possibilidade, pois nós produzimos, disseminamos e consumimos a informação, e ao fazermos qualquer um destes ‘passos’, a transformamos.
A questão fundamental aqui é
o funcionamento dos sistemas em rede - redes de informação/ pensamento, através
do imaginário instituinte da sociedade como aponta Castoriadis, ou da
auto-organização dos sistemas emergentes de Steven Johnson.
Neste sentido, é importante a
compreensão dos sentidos que articulam questões aparentemente tão distantes.
Este, é já um exercício em rede. A propagação ou disseminação da informação na
internet, como também nas cidades, acontecem pelas redes relacionais de
informação. Redes estas, formadas pelos indivíduos e instituições na produção e
espraiamento do objeto-informação. Por outro lado, temos a cidade e sua
organização espacial que está ligada às questões econômicas, sociais, sociais e
históricas, mas que funcionam como se houvesse algum maestro regendo a
orquestra, mesmo que em determinados momentos ela desafine, perca o tom ou
compasso. Este maestro não existe. A força da organização é a convivência
negociada e ao mesmo tempo, tensional,
dos atores sociais, na definição dos espaços de convivência. Podemos pensar
numa espécie de ‘consciência’ social, que surge das vivências individuais e da
aproximação com o ‘outro’ para a criação de ‘novos’ modos de vida e apreensão
social. Novo, no sentido das modificações/ construções e transformações durante
o processo de aprendizagem do espaço.
Na organização da cidade, Johnson
fala de emergência, no ‘caminhar’ da sociedade, Castoriadis trata do imaginário
instituinte, e Castells sobre o espaço urbano, trata da sociedade em rede.
Observo nos ‘sistemas’ adotados e pesquisados por estes autores alguma coisa em
comum, que é a produção de informação na cidade-sociedade e também de
criação/produção de conhecimento na/da sociedade sobre/com o espaço urbano.
Informação e conhecimento como articulação dos sistemas emergentes de
auto-organização.
Há objetivos explícitos para uma cidade – razões de
ser que normalmente seus cidadãos conhecem, decorrentes da proteção
proporcionada pela cidade murada ou do comércio livre nos mercados. No entanto,
as cidades também têm um objetivo latente: funcionar como mecanismos de
armazenamento e recuperação de informações. As cidades criaram interfaces
amigáveis milhares de anos antes que alguém sonhasse com computadores digitais.
As cidades juntam mentes semelhantes e as colocam em escaninhos conexo.
Sapateiros junto de outros sapateiros e fabricantes de botões perto de outros
fabricantes de botões. Idéias e mercadorias fluem rapidamente nesses conjuntos,
levando à produtiva polinização cruzada, garantindo que boas idéias não morram
em áreas rurais isoladas. (Johnson, 2003. p.79)
Johnson, através da ‘emergência’ faz conexões da dinâmica de rede no funcionamento do cérebro, na organização das formigas, nos sistemas urbanos e nos softwares. Esta construção-contribuição permite vislumbrar algumas ‘viagens’ da informação por estes sistemas, e ainda a possibilidade de um conhecimento construente e coletivo. Podemos observar que os sistemas funcionam de modo articulado, e não estanque. Percebe-se um componente coletivo, ou imaginário instituinte na cidade, como também no próprio indivíduo-cérebro. São redes e grupos que trabalham articulando-se com outras redes e grupos.
Sob todos os aspectos, estamos no meio de outra revolução tecnológica – a idade da informação, uma época de conexões quase infinitas. Se o armazenamento e a recuperação de informação eram objetivo latente na explosão urbana da Idade Média, eles são os propósitos evidentes da revolução digital. Isso nos leva à seguinte questão: a Web também está aprendendo? Se é fato que as cidades podem gerar inteligência emergente – um macrocomportamento provocado por milhões de micromotivos -, que forma de nível mais alto está sendo gerada entre os roteadores e os cabos de fibra ótica da Internet? (idem. p.83)
Trata-se de auto-organização.
As possibilidades do empreendimento da circulação de informação e construção de
conhecimento tem seu potencial ampliado pelas redes informacionais de
comunicação. Steven Johnson sugere para um melhor entendimento dos sistemas, a
substituição das formigas por neurônios e do feromônio (deixado e seguido pelas
formigas) por neurotransmissores como analogia da aprendizagem em formigas, no
cérebro e quem sabe na Web, através
da conexão dos vários cérebros em rede, o que permitiria ao sistema virtual, um
comportamento de vizinhança, embora existam deslocamentos/ distanciamentos espaciais.
O que parece interessante é a
capacidade de nossas mentes do reconhecimento da mente do outro; as formigas,
pelo rastro de feromônio acumulam alimentos, ou limpam os detritos; as cidades
aprendem as funções pela história de suas populações. Acho que isto poderia ser
a ‘grande consciência’ que abrange os micromotivos
e microcomportamentos ou a instituição imaginária da sociedade, na qual
Castoriadis trata da imaginação, relacionando este termo com a imagem, em seu
sentido mais geral e também com a idéia de criação:
[...] Não
cria “imagens” no sentido habitual (ainda que as crie, também: marcos
totêmicos, bandeiras, brasões, etc.), porém formas, que podem ser imagens no
sentido geral (assim, falamos de “imagem acústica” de uma palavra), mas que
são, de modo central, significações e instituições, as duas sempre solidárias.
O termo ‘imaginário’ é aqui um substantivo, e se refere diretamente a uma
substância: não é um adjetivo denotando uma qualidade. (1999. p.242)
Assim, trata-se de uma forma
de conexão entre a imaginação e a matéria em sua ‘substância’. A imaginação na
sociedade, como possibilidade de organização das ações e pensamentos conjuntos,
tem implicações materiais e informacionais. A matéria, a imaginação e a
informação andam juntas, e diria mais: não podemos facilmente separá-las.
Conceber a informação sem o caráter de criação que imaginação pode dar, ou da
materialidade da substância fluida é difícil: seria mutilação de sentidos e
propósitos. Quero com isso, tratar das articulações entre estas grandezas, se
assim podemos chamá-las, para que o pensamento sobre as práticas cotidianas no
espaço urbano (assim, como o da circulação da informação pelas várias mídias)
não seja a interpretação individualizada ou puramente hierárquica. Existe um
componente coletivo e social que dão múltiplos sentidos, quer sobre o
território, quer nas vias de transporte da informação. A informação toma o
caráter de objeto e imaginação, produtora de diversidades, presente na
organização sócio-espacial.
Milton Santos afirma que o espaço não é estático ou estanque, é fluido, ambiente de fluxos e velocidades:
Hoje, vivemos um mundo da rapidez e da fluidez.
Trata-se de uma fluidez virtual, possível pela presença dos novos sistemas
técnicos, sobretudo os sistemas da informação, e de uma fluidez efetiva,
realizada quando essa fluidez potencial é utilizada no exercício da ação, pelas
empresas e instituições hegemônicas. A fluidez potencial aparece no imaginário
e na ideologia como se fosse um bem comum, uma fluidez para todos, quando, na
verdade, apenas alguns agentes têm a possibilidade de utilizá-la, tornando-se,
desse modo, os detentores efetivos da velocidade. O exercício desta é, pois, o
resultado das disponibilidades materiais e técnicas existentes e das possibilidades
de ação.(2002b. p.83)
O espaço, através da fluidez
e rapidez adquire sentidos outros que o diferem do caráter determinista de
outrora; o espaço dos fluxos e os fluxos do espaço estão mais próximos da vida
contemporânea, onde a informação e o conhecimento transformam-se em valores
expressivos da sociedade de consumo e de massas. Não devemos esquecer a
advertência de Santos: a quem serve esta velocidade? Quem tem o domínio sobre
ela? Existe aqui contradição que desejo explorar, sem no entanto, pensar ser
possível esgotar a discussão. Existem movimentos e dinâmicas da informação e do
conhecimento, existem os sistemas financeiros e econômicos hegemônicos que
detém o poder, e portanto a informação e o conhecimento, e ainda podemos
identificar na sociedade, os indivíduos/ grupos que imprimem suas marcas no
tempo-espaço de suas vivências, construindo conhecimentos e saberes através das
informações conquistadas/ processadas/ construídas. Como podemos falar de
sistemas auto-organizados emergentes na cidade e na sociedade, se ainda os
dilemas urbanos são mediados pelo capital e pelo poder financeiro e econômico?
Se descolarmos a apreensão do espaço, quem sabe não poderemos entender os
fenômenos de emergência e ‘subordinação’? Mas isto não seria uma mutilação do
estudo e da abordagem? Não é disso que estamos fugindo quando evocamos a
auto-organização e emergência em sistemas complexos? Não podemos cair na
armadilha da simplificação, como forma única da compreensão destes sistemas-complexus.
Diante das dúvidas e até
mesmo para permanecer com elas, é interessante que a abordagem possa abrigar a
diferença e opacidade, o complexus e
as contradições. Nesta via, a multirreferencialidade
nos ajuda a caminhar por este emaranhado de informações, conceitos,
conhecimentos, espaços, fluxos e cidade. Se pudermos dizer que a
multirreferencialidade tem princípios, diríamos que são o da opacidade do
objeto e dos múltiplos olhares, não como negação e mutilação de um ante o
outro, mas como forma de distinguir e explorar visões outras, que um olhar
hierárquico não pode admitir. A nitidez dos contornos e arestas não se
apresenta pois, a cada olhar, uma nova relação se estabelece.
Com estas observações vamos
tentar encontrar caminhos para o drama exposto acima. Acredito que as instituições hegemônicas exercem seu
poder de pressão sobre a sociedade como um todo, mas esta sociedade não absorve
os princípios ingenuamente, existe uma retro-alimentação do sistema que
modifica a estrutura de poder por meio das micro-apreensões de cada uma das atividades
ou a cada re-construção do conhecimento. Esta dinâmica está presente tanto nos
softwares inteligentes, nas cidades ou mesmo
no cérebro, a diferença é de escala. Mas a proximidade entre os
constituintes do sistema permite a criação de uma ‘consciência’ social mais
geral.
Os fluxos nas redes geram
outros fluxos a partir de suas próprias dinâmicas. O sistema não se resolve,
ele terá sempre a dissipação de energia, o que é fundamental para a sua
constante instabilidade e mudança.
Acerca das estruturas dissipativas, podemos falar de
“auto-organização”. Mesmo que conheçamos o estado inicial do sistema, o
processo de que ele é sede e as condições nos limites, não podemos prever qual
dos regimes de atividade esse sistema vai escolher. O alcance desta observação
impressionou-me. Não podem as bifurcações ajudar-nos a entender a inovação e a
diversificação em áreas outras que a física ou a química? Como resistir à
tentação de aplicar essas noções a problemas da esfera da biologia, da
sociologia ou da economia?[...] (Prigogine, 1996. p.74)
A aplicação de princípios
nascidos em outros ramos da ciência é de fato irresistível, o que leva para as
possíveis conexões com a natureza. Uma ciência dá suas contribuições, que são
apreendidas e ressignificadas por outras, e a partir daí elas começam a ganhar
vida, e podem voltar ao seu nascedouro, já modificadas e transformadas, como
num processo de contaminação e combate. Dissipação, auto-organização e
emergência, princípios para a compreensão do espaço urbano, e neste sentido, a
multirreferencialidade muito tem a contribuir:
A multirreferencialidade (...) parte da idéia de que
o objeto é efetivamente suscetível de tratamentos múltiplos, em função não só
de suas características, mas também dos modos de interrogação dos atores (sobre
esse objeto) e que esta multiplicidade é radical. Cada abordagem, cada
referente é como se fosse o limite do outro... É isso, pois que faz a
especificidade da nultirreferencialidade, e não a complementaridade, a
atividade, a pretensão de uma transparência pressuposta, e de um domínio
possível (deste objeto), mas a afirmação de uma vazio necessário, da
impossibilidade de (se alcançar) um ponto de vista superior a todos (os demais)
pontos de vista e a afirmação da limitação recíproca dos diversos campos
disciplinares. Há (pois) diversos campos de referência possíveis, nenhum esgota
o objeto, nenhum pode, sobretudo, ser reduzido a outro, ou nenhum pode ser
explicativo do outro campo. (Berger, apud Fróes
Burnham. 1998:46)
A multirreferencialidade pode
ser aqui uma base para as abordagens urbanas, e mais uma vez tomamos de assalto
um conceito ao nosso favor. O que pretende-se com isso é a criação de
possibilidades para os estudos dos espaços urbanos através de uma ciência que
evite a mutilação do objeto. Ao chamar a atenção dos aspectos materiais,
informacionais e imaginários dos processos urbanos e sociais, quero apenas
indicar que o objeto modifica-se e transforma-se em função de nossa aproximação
ou de nosso distanciamento. É como nas imagens evocadas por Italo Calvino (no
início do texto) para descrever as dunas e as outras conexões estabelecidas a
partir de sua forma. Assim, o olhar não vê apenas a areia que substancialmente
conforma as dunas, mas faz dela matéria-prima para sua criação, e portanto, com
o uso da imaginação, reconstrói e cria espaços e conceitos díspares em relação
à matéria original.
Penso que alguns caminhos
foram traçados em busca de possibilidades outras das abordagens urbanas. Não
basta que cada ramo da ciência preocupe-se com a ‘fatia’ do mundo que lhes
cabe. É preciso fazer com que as ciências interajam em suas pesquisas, só
assim, poderemos caminhar para uma maior apropriação do espaço de nossas vidas.
As ligações e articulações entre os objetos existem, é preciso não cortá-las.
As ciências podem articular seus saberes e entender a sociedade como construção
contínua e coletiva. É uma questão de processo, mais que qualquer outra coisa.
Processo contínuo, sem uniformidade, com discrepâncias e contradições, onde as
múltiplas dinâmicas procuram cada uma, os seus espaços e territórios.
E onde está o conhecimento, a
informação e a cidade? O que tem isso com aquilo? Onde está o espaço urbano? E
as redes informacionais? E a auto-organização? Essas perguntas eu continuo a
fazer e não obtenho respostas. Talvez porque elas não sejam bem formuladas,
pois dizem que uma questão bem formulada, certamente obterá êxito em sua busca.
E no caso de termos respostas, para elas,
perguntas também serão encontradas. Não estou certo, nem convencido de
tudo isto. Mas uma coisa parece certa: para uma abordagem consistente do espaço
urbano, não basta um estudo minucioso de suas ‘partes’. São necessários
diálogos com a questão urbana, e para isso, as pessoas, as ruas, o capital, os
lugares e as atividades precisam ‘falar’, precisam de expressão e de espaço
para a comunicação nas abordagens e pesquisas. Aqui o conhecimento, a
informação e a imaginação têm papel fundamental nas dialogias das dinâmicas
urbanas.
Esta questão, pode em
princípio parecer simples, pode até já ser uma prática corriqueira em alguns
centros de estudos e pesquisas, mas de fato acredito na potencialidade da
informação, da imaginação e do conhecimento, na produção e criação de mundos. O
espaço de fluxos articula estas funções e grandezas; naqueles, estas se
produzem e constituem o lugar fluido das correntes de bits de informação. Daí
seguem para a construção de sentidos e portanto, de conhecimento, que por sua
vez articula, concentra e dispersa ao mesmo tempo, indivíduos na formação/
geração da própria sociedade. Organismo fluido, com multi-sentidos, repleto de
intenções e tensões no seu interior, onde o conhecimento é gerado e ao mesmo
tempo gerido, por meio dos sistemas auto-organizados, base da sociedade e de
sua mobilidade.
Aprender com os fluxos: o
movimento das formigas, das abelhas e das aves, que sem líderes podem
‘polialogar’ através da aproximação e não pelo domínio supostamente exercido
por um líder qualquer. Os movimentos emergentes podem ser observados também na
apreensão da cidade em várias escalas de aproximação. Faz-se necessário pensar
em rede, ter consciência desta condição, que é a mesma do funcionamento de
nosso cérebro. De alguma forma as redes de informação no corpo humano funcionam
e muito podem ajudar para o entendimento de outros sistemas. É a tentação de
que escreve Prigogine, mas é preciso cuidado e rigor. As analogias contribuem
para a aproximação e para conectar os objetos-ações, mas é preciso tentar a
própria tentação. O pensamento em rede afasta a lógica do menor percurso entre
dois pontos – a reta. Não temos dois pontos apenas a conectar. A vida se faz de
multipontos e neste caso, Oscar Niemeyer tem muito a nos dizer:
Não é o ângulo reto que me atrai
nem a linha reta, dura, inflexível,
criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual,
a curva que encontro nas montanhas do meu país,
no curso sinuoso dos seus rios,
nas ondas do mar,
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo
o universo curvo de Einstein.
(2000. p.17)
Atrair-se pela linha curva:
este é o nosso desafio. Os métodos elaborados, os caminhos rígidos e
previamente definidos nas pesquisas, os ‘passos a seguir’, a previsibilidade, a
monotonia, tudo isso se esvai quando da compreensão dos caminhos múltiplos, da
leveza, da materialidade e imaginação do objeto. O inusitado e o inesperado
estão nas curvas, onde a trajetória é cambiável, onde não existem impedimentos
nem amarras para o percurso. Mais uma vez: informação, conhecimento, cidades e
redes – articulações para os espaços urbanos – não são ‘coisas’ dadas, são
construídas, forjadas e concebidas, e não o são por heróis ou mentes
brilhantes. A produção do conhecimento é algo coletivo, não está totalmente
dentro do indivíduo, é preciso provocar, tensionar
para que a instabilidade interno-externo faça reagir a capacidade de criar e conectar.
O conhecimento como produto
das relações humanas com o mundo-ambiente é fundamental nas articulações dos
fluxos no espaço e dos espaços de fluxo. A coisa-informação e a coisa-conhecimento
é a coisa-sendo.
Construção, incertezas e
inacabamento ...
Deixem-me ficar por estas
curva de nossa abordagem.
BIBLIOGRAFIA:
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1992.
CASTELLS, Manuel.
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Paz e Terra, 1983.
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labirinto V. tradução: Lílian do Valle. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
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polêmicas para e compreensão do currículo escolar. In: BARBOSA, Joaquim
Gonçalves. Reflexões em torno da
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JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
NIEMEYER, Oscar. Minha arquitetura. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000.
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certezas: tempo, caos e as leis da natureza. tradução: Roberto Leal Ferreira.
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico
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________. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002a.
________.Por uma outra
globalização: do pensamento único à consciência universal. 9ª ed. Rio
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